Julian Lennon, filho de John Lennon, fala sobre ambiente, pobreza, igualdade, música... E, a contragosto, do pai

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Hey, Julian." Não conseguimos evitar apresentar-nos assim à pessoa de quem fala a música. Hey Jude, que começou por se chamar Hey Jules, foi escrita por Paul McCartney para o pequeno Julian Lennon, a passar, aos 5 anos, pela dolorosa separação dos pais. A relação com o pai seria sempre difícil e, quando John morreu assassinado, Julian, então com 17 anos, descobriu que o progenitor não lhe deixara praticamente nada em herança. Teve de lutar durante anos em tribunal para ter acesso a parte da imensa fortuna do ex-Beatle.
John Charles Julian Lennon, 56 anos, primeiro dos dois filhos de John, veio a Portugal a convite da GLEX – Global Exploration Summit. Pelo caminho, juntamente com outras individualidades, assinou a Declaração de Lisboa, um documento para a proteção ambiental da Terra.
Julian, hoje, faz de tudo um pouco. Música, fotografia, documentários... Mas do que ele quer mesmo falar é da sua Fundação White Feather, com projetos sociais e ambientais em vários cantos do planeta (com uma história de origem que quase parece demasiado boa para ser verdade...), e dos seus três livros infantis sobre o ambiente. O primeiro deles, Touch The Earth, foi mesmo traduzido para português (Vamos Ajudar a Terra, Edições Asa). “É a única língua, além do inglês. A editora portuguesa contactou-nos e nós ficámos muito contentes”, diz. Julian só não fica muito contente a falar do pai. Está compreensivelmente farto do tema. Mas é por aí mesmo que começamos porque, enfim, se ele não se chamasse Lennon não estaríamos aqui.
O seu pai falava muito de paz e amor. Se fosse vivo, estaria envolvido nos mesmos projetos de Julian?
Não faço ideia. Não gosto de imaginar cenários. As pessoas mudam. Quem sabe que opiniões ele teria atualmente?
As emergências de hoje também são muito diferentes das do tempo dele...
São muito mais extremas. E hoje temos mais consciência dos problemas.
O que o fez criar a Fundação White Feather [Pena Branca, em português]?
Estava em digressão na Austrália e veio uma tribo indígena ter comigo, e um deles trazia uma pena branca e perguntou-me: “Podes ajudar-nos? Tu tens uma voz...” Depois soube da luta deles e fiz um documentário sobre isso. E agora uma história de contexto: o meu pai disse-me que, se alguma coisa lhe acontecesse, ele me mostraria que estaria bem, que todos nós ficaríamos bem, na forma de uma pena branca. E portanto, quando recebi a pena branca dos aborígenes, fiquei com pele de galinha. Enfim, depois quis dar o dinheiro do documentário à tribo, e a única forma de o fazer era através de uma fundação. E White Feather pareceu-me o nome mais apropriado. Depois comecei a receber muitos pedidos. “Podes ajudar-nos?” E eu respondia: “O que é que eu posso fazer? Sou só um músico. Ando de um lado para o outro a tocar rock’n’roll.” Mas depois pensei: bom, talvez consiga fazer alguma coisa.
Como são escolhidos os projetos?
Muitos projetos tocam-me no coração. Por exemplo, água potável é crucial para a sobrevivência.
E é um problema crescente, com as alterações climáticas…
Sim. E muitas empresas estão a ficar gananciosas com recursos naturais que deviam ser disponibilizados gratuitamente a todos nós. Outras áreas importantes: saúde e educação. Vi com os meus olhos os desafios que as jovens enfrentam pelo mundo todo. Não têm as mesmas oportunidades do que os rapazes, sobretudo em África. A White Feather tenta construir escolas, dormitórios, clínicas.
A igualdade de oportunidades entre homens e mulheres é uma das melhores formas de as famílias saírem da pobreza...
Absolutamente. As mulheres são as cuidadoras naturais. São elas que nos trazem ao mundo. E sentem uma conexão ao mundo muito maior. Quando a minha mãe morreu, há uns anos [2015], lancei uma bolsa para raparigas em nome dela [Cynthia Lennon], para tentarmos enviar algumas jovens para universidades, para que persigam os seus sonhos. Muitas das raparigas com quem falámos na Etiópia e no Quénia queriam ser educadas, mas para poderem regressar a casa e proteger as pessoas e as aldeias que amam. É uma coisa muito simples mas muito bela.
Ou seja, não o fazem só por elas.
Exato. E é o lado de cuidadoras que elas têm para fazerem da sociedade um mundo melhor. Finalmente, mas não menos importante: lutamos pelas tribos indígenas, pela proteção das suas vidas, das suas heranças. Um dos nossos grandes projetos é na Amazónia: temos financiado a luta das tribos para que lhes devolvam as suas terras.
Isso não se tornou mais difícil, com a eleição de Bolsonaro?
Shhhh… Sim, pois. A política atual é mais nojenta do que alguma vez vi. Não sou politizado, mas quando vejo a ganância a chegar a este extremo... É isso que nós, os pequenos, tentamos fazer: lutar para que as pessoas conheçam os problemas.
Não sente, às vezes, que é uma guerra impossível de ganhar?
Não, não sinto. Com as redes sociais e a forma como o mundo hoje está ligado, vejo despontar uma juventude informada, que se preocupa com o planeta. Acho que o mundo vai mudar drasticamente nos próximos dez anos. E espero vir a ser parte dessa mudança.
Acredita que está mesmo nas mãos das pessoas comuns resolver estes problemas?
Temos boas hipóteses, apesar de ser muito difícil – estamos a lutar contra muito dinheiro. Mas somos muitos. Todos juntos seremos suficientes para que o bem vença.
Está a depositar a sua fé nas novas gerações?
Completamente. Tantos jovens, sobretudo raparigas, que se têm levantado e lutado pelos nossos direitos... É incrível! Estou muito feliz por ver isso. E a razão pela qual comecei a escrever livros infantis foi para educar os mais novos. Porque é que há plásticos no mar? Porque é que não há água potável? E nestes três anos em que escrevi três livros, já vi diferenças. As crianças... Escolas que puseram os meus livros no programa…
Sente que os seus livros estão a fazer a diferença? 
Sim. Quer dizer, chegámos a ser número 1 do New York Times, da Amazon… E agora vamos transformar os livros numa série de animação.
Qual é a mensagem principal?
Tomar consciência do porquê de as coisas serem como são. Lembro-me de que em miúdo, quando era hora de dormir, a minha mãe ou a minha avó lia-me histórias com desenhos. O meu colega de escrita [Bart Davis] e eu falámos disso e pensámos: não seria fantástico se pudéssemos chamar a atenção para o mundo em que vivemos?
As crianças não ficam assustadas com esse mundo?
Não. Mas ficam chateadas. Chocadas com o modo como nós, os adultos, tratámos deste planeta e o estado em que o deixámos para as gerações futuras. Vejo que querem mudar. Tenho-o visto na Greta [Thunberg] e em tantos outros.
Fez mudanças no seu estilo de vida?
No meu estilo de vida? Sim, claro. Várias coisas. Plásticos de uso único... Levo os meus próprios sacos quando vou ao supermercado. Tento comer produtos locais e biológicos. Obviamente a poluição atmosférica é uma coisa complicada, especialmente quando temos de viajar tanto pelo mundo para certos eventos.
É a tecnologia que vai salvar-nos?
Adoraria acreditar que sim. Mas enquanto andarem por aí as empresas de petróleo e gás, é uma luta dura. Ainda assim, não tenho dúvidas de que os tempos estão a mudar para melhor. Mas, lá está, a minha geração… Nós não tínhamos informação. Não sabíamos o que estávamos a fazer.
Lembra-se de a sua mãe lhe dizer alguma coisa sobre o ambiente?
Nunca foi uma preocupação. Só hoje nos inteiramos do que se passa e do que estamos a fazer. Eu era tão ignorante…
Lembra-se de alguma luta pelo ambiente nesse tempo? A proliferação nuclear era um tema nos anos 70…
Nem por isso. No meu tempo, se tínhamos preocupações ambientais, éramos considerados hippies.
Tem feito muitas coisas diferentes ao longo da sua vida. Como se apresenta quando conhece alguém?
Não gosto de ser etiquetado, e acho triste que a sociedade faça isso às pessoas. Se uma pessoa tem uma ideia, uma energia, um pensamento, seja qual for a área, então devia poder seguir essa ideia. A escola também devia ser diferente. É demasiado focada na… vida, nas suas realidades.
Devia ser mais abrangente?
Muito mais abrangente. Pelo menos, já vejo alguns miúdos a terem uma educação mais ampla do que aquela que eu tive.
Ainda tem outras paixões que quer seguir?
Já não sei que mais posso fazer. Ainda faço música e quero fazer mais nos próximos anos. Fotografia é para continuar – estou viciado e gosto de mostrar a realidade crua. Se conseguir viajar e visitar os países que a Fundação White Feather ajuda, como a Etiópia, o Quénia ou a região da Amazónia, tenho a oportunidade de conhecer de perto algumas dessas histórias e de as trazer para o grande público. Documentários, claro: quero continuar a estar envolvido.
Aos 21 anos, lançou o seu primeiro álbum. Depois, só fez mais cinco.
Sim, sou um bocado lento.
Foi o seu interesse por música que se desvaneceu ou foi o seu interesse por outras áreas que lhe deixou menos tempo para a música?
Não gostava da indústria. Muitos artistas têm sido usados e abusados durante anos, com os seus direitos retirados… Quero dizer, eu ainda não sou dono do meu primeiro álbum. Não tenho direitos totais sobre ele. Isso é muito frustrante. Foi por isso que me tornei independente.
Um artista independente é mais livre?
É muito difícil na mesma, porque agora, com a internet, somos milhões de artistas. É difícil um artista independente ser visto e ouvido. É duro.
É conhecido por ter uma grande coleção de memorabilia dos Beatles.
Não é a maior, nem por sombras. Mas sim, tenho uma coleção. Comecei a colecionar coisas do meu pai porque… nada me foi dado. Comecei então a colecionar coisas que me diziam algo. Não é uma coleção grande, mas é uma coleção pessoal, o que de certa forma a torna mais especial.
Quais são as peças que lhe são mais queridas?
Há algumas guitarras que o meu pai me deu... Talvez a peça que me é mais querida seja um de apenas dois manuscritos existentes da letra de Imagine.
É essa a sua música favorita?
Não tenho uma música favorita. Há demasiadas grandes músicas, demasiada beleza no mundo para dizer: “Esta flor é a única de que gosto.”
Uma das mais bonitas músicas dos Beatles é inspirada em si. Isso fá-lo sentir alguma coisa ou absolutamente nada?
Bom, ouvia-a muito…
Imagino.
Como é que se pode não sentir algo quando alguém escreve alguma coisa porque gosta de nós? E naquelas circunstâncias… Mas no outro dia alguém me fez essa pergunta e outra pessoa respondeu por mim: “Não percebe que, sempre que ele ouve essa pergunta, é lembrado da separação dos pais? Não é uma canção feliz para ele.” E pensei: “Sim, tens razão! Eu nunca tinha pensado nisso dessa forma.” Talvez por isso tenha uma relação de amor-ódio com a música.
Lucy in the Sky With Diamonds...
Estamos a ir pelo caminho dos Beatles, é? Ok, tudo bem.
Sendo o Julian quem é, as pessoas também gostam de ler sobre...
Já está tudo cá fora.
Como viveu os últimos tempos de vida de Lucy, a sua colega de infantário, que está por detrás do desenho que acabou por originar a música e que morreu há uns anos, depois de uma longa batalha contra o lúpus?
Soube que ela tinha lúpus, e é por isso que sou um embaixador global para a Fundação Americana para o Lúpus. Tentei apoiá-la como podia, e então mandei-lhe flores para o jardim. Foi muito triste saber do seu desaparecimento, mas espero que, com a ajuda do trabalho da fundação, estejamos mais perto de encontrar uma cura. É uma doença horrível.
Já falou noutras entrevistas da tristeza que é perder amigos. Fá-lo sentir-se velho?
[Risos.] Não sei, é difícil perder alguém. É o sentimento mais estranho e único. Não sou religioso, mas sou espiritual, e não sei se é pela conexão de ter recebido a pena branca, sobretudo depois do que o meu pai me disse... Mas acredito que somos todos um só.
Há alguma coisa que não tenha dito ao seu pai e que gostasse de dizer?
Não, porque é impossível saber como a nossa relação iria evoluir. Eu vivo para o aqui e para o agora. Não vivo de arrependimentos ou de suposições.
É uma melhor maneira de viver?
Sim, claro. Oiça, a única coisa importante que saiu da minha relação com o meu pai foi a Fundação White Feather, e o facto de que agora consigo ajudar muitas outras pessoas. E talvez isso seja em parte influência dele, mas devo dizer que é muito mais influência da minha mãe, daquilo com que ela teve de lidar, daquilo por que ela passou, do meu amor por ela.
VISÃO

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